É um pequeno relato de como Clarice, de forma idiota, deixou-se apaixonar. Não pretendo relatar a história de como se conheceram, as origens, as coisas gentis, mas como ela percebe sua paixão, como confessou e como descobriu que não era correspondida.
Sentiu falta de Horácio pela primeira vez enquanto estava em casa, a exercer alguma espécie de trabalho ou ócio no seu computador. Nesse ínterim, Horácio aparecera onlinemente e começou a emanar citações de poetas como Shakespeare, e pensadores como Aristóteles. Conversa vai, conversa vem, o papo flui agradavelmente e ele ajuda Clarice a trabalhar com menos tédio, entretendo-se em uma troca agradável de mensagens.
Diante deste cenário é importante esclarecer que Clarice e Horácio já se conheciam de outras datas, de outras circunstâncias, as mais bizarras possíveis, as quais não valem a pena serem narradas.
Deixando-se encantar, e por que não se seduzir por um sonho, digo sonho porque tratava-se de uma ideia não presente no campo da razão, mas oriunda dos ensejos do desejo, começou a construir uma catedral de sentimentos com relação a Horácio. E a partir daí, a coisa mais tosca que ele dissesse parecia sair da boca de Virgílio. E Clarice começou a se portar emocionalmente tão frenética quanto Oscar Wilde diante da grande Atriz Sarah Bernhardt, quando esta chegava a Londres e aquele se derramava descompassadamente à presença da atriz dizendo estar vislumbrado de paixão.
Ela chegou a acreditar que estava a amá-lo. Imagine, Clarice a amar Horácio!
E sim, Clarice comparou-se a Oscar Wilde, e depois de conquistado o contato físico extra amizade, aquele contato que muitos amigos têm e ao qual lhe dão o eufêmico apelido "amizade colorida", certificou-se de que havia gostado do evento e de que daria continuidade à sua história de amor.
E mais, Clarice dividiu o tolo sentimento com alguns raros amigos que também conheciam Horácio. E sincera como era uma amiga de Clarice, Hérmia disse-lhe que obviamente amor ali, se houvesse, seria somente o de irmãos. Nitidamente! Notoriamente! Mas Clarice mesmo assim insistiu em seu conto frustrado de amor, deixando-se acreditar na ideia de que Horácio simplesmente não tinha coragem de se declarar.
Dias se passam, é chegada uma noite, mais uma em que Horácio pede dicas onlinemente a Clarice de como se desvencilhar de mais uma de suas façanhas amorosas fugazes. Atitude esta que evidencia o caráter de amizade da relação. Nesta noite, Clarice já havia ponderado há quanto tempo estava a investir em uma história que não apresentava resultados, tão pouco sessão de semeadura para colheita futura. Resolve então, Clarice, dar voz à razão: ele gosta de você, amiga. E como lhe doeu crer no óbvio - era o que era: somente amiga. Além de amiga, amiga conselheira, amiga que arranja amigas. Unicamente amiga.
Respirou fundo e aceitou o convencimento. As dores que lhe valeram essa paixão não afetaram sua vida prática. Interferiram somente nas horas poucas de ócio, horas estas que eram tomadas de uma tristeza indômita que lhe bania o coração de dentro de si, fazendo oco nas entranhas e gritando em choro mudo a dor mais amarga e vil de um amor não correspondido. E como chorou doído, desabrido, sofrido, e deixou-se pensar no fúnebre e no acaso de nunca mais voltar a amar.
Voltemos para a noite do convencimento do "unicamente amiga". Clarice sente o seu peito em estado de fora do comum, mas nada que não seja domável. Já não chora e nem vê nisso uma situação que peça tal ato. Nem sai à procura de substituto. Muito menos começa a comer desenfreadamente ou a fumar um cigarro a mais. Clarice respira, lê, pensa, e escreve a Horácio o quanto o sentimento "gostar" lhe faz ficar confusa. Não saber se "gostar" é bom ou ruim. E Clarice não se declara. Julga toda a situação tomando uma interpretação julgada inteligente por si diante dos fatos, não crê que seja necessário declarar-se para passar o escárnio da amante não amada. Não. Clarice não se declarou. Apenas manifestou que gostava. Ela julgou melhor não se declarar.
E assim terminou a paixão a um de Clarice por Horácio, que durou a estação de 2 meses entre outono e inverno, uma noite de manifestação física de afeto e várias horas de tortura feminina desbaratadas.