quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Um poeta, sua alma e sua mente

à personagem Orlando, de Virginia Woolf

Não,
O coração de um poeta não foi feito
Definitivamente,
Para ser um coração
A este mundo
Pertencente;
Posto que
Ao coração de um poeta,
Cabe antes de tudo,
Possuir uma alma
Decente!
Oriunda de bons ventos
Descendente!
A alma do poeta, pois
Clarividente
Dos maus tratos que o homem
Covardemente
Dá a seus irmãos também homens
Se faz
Ausente.

Eis a mente, não-mente,
Do poeta.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ser Pollyanna

Polly recebeu este ridículo nome porque sua mãe lera Pollyanna e sem entender o cunho crítico da história, engraçou-se com o nome e deu-o à sua filha.

Passados alguns anos, no 6° ano do Ensino Fundamental II, Polly sofria bullying de seus amigos que leram o livro solicitado por sua professora muito "das boas", que não subestimava a capacidade de produzir opinião de seus alunos.

A mãe de Polly, desatenta ao verdadeiro erro, tira sua filha do colégio e a mete numa redoma chamada igreja. O erro!

Polly hoje é uma mulher tosca. Mas tão tosca, que tem suas gorduras grotescas criadas por sua burrice de não querer deixar-se ser sensual, pois acredita que ser sensual é pecado.

Ao mesmo tempo que tenho raiva desta mulher, sinto pena de sua insegurança, de sua ignorância e da falta de sexo que ela, nitidamente, sofre.

Deixo-me conter a emoção para não mandá-la tomar no meio de seu gordo cu, provavelmente virgem, pois sua igreja deve dizer-lhe "no cu é pecado". Creio que se ela praticasse sexo não seria tão preocupada com coisas inúteis como é. Ela teme perder seu emprego porque se deixa dominar e escravizar pelos métodos coercivos de seus patrões, verdadeiros senhores de engenho contemporâneos, a sinhá se faz de simpática e ela, a criada gorda, trabalha em troca de falsos sorrisos.

Ah, como é esperta a patroa!

Pobre da gorda Polly. Não tem boca pra nada, e ainda por cima é tomada pela maior das burrices: a de achar que por se comportar conforme as regras ditas por sua igreja e por seus patrões fará de si uma cidadã a salvo do inferno e do desemprego.

Gorda, burra, e podia ser bonita, mas está tão nitidamente infeliz que não pode cuidar de si: saiu-lhe assim uma bereba na boca. E sua bereba grita "Eu odeio minha vida!", mas a dona da bereba não ouve o grito de sua ferida.

Não sei o que será desta pobre mulher, fruto de uma má interpretação de uma obra literária e de uma cultura moralista castradora e emburrecedora.

Polly, gorda, casada, tem um lindo filho, não faz sexo, um marido troncho, não faz sexo, mas faz parte de uma gama de cidadãos que ao invés de viverem, preocupam-se em decorar a foto do comercial de margarina. Todavia, hoje a bereba gritou.    

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Hora e a Vez de Augusto Matraga

Texto que se soltou de um eu escondidinho na noite em que fui ouvir Dôra Guimarães narrar o conto roseano "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" na recém inaugurada biblioteca Brasiliana da USP

Lindo, lindo, lindo!
De uma lindeza que destamanha
Muito do que já foi medido.

Assim era a estória contada:
Frase por frase;
Personagem por personagem.

O narrador ia de si se crescendo
E se tornando de um belo único
Cada vez mais no a fim do cativar

E no fim ouve um fim:
De morte do protagonista no final:
Com pecado de sempre no lembrar.


terça-feira, 21 de maio de 2013

Descrição de 30 segundos

Clarissa está subindo as escadas. Cansada, o dia lhe trouxe algumas daquelas novidades indesejadas, como o preço do conserto do carro, como as tarefas a mais a se fazer dos alunos vagabundos que tem. Tarefas a mais: um emaranhado de atividades das quais Clarissa sente vontade indômita de se desprender. E não é possível; e não é admissível; e não há escapatória - vai ficar presa às atividades obrigatórias como operário preso à sua classe e seu jaleco empoeirado. À classe de alunos vagabundos. À classe social de pobre eternamente emergente. Ao jaleco que não usa pelo aspecto ridículo. Ao giz que lhe resseca os dedos. Ao canetão que lhe causa tendinite na região dos ombros costas coração.

Clarissa está subindo as escadas. Recebe uma mensagem de seu mais novo, namorado? Para, pensa, olha, sente, ri, e cresce dentro de si, entre garganta e peito, uma esfera que se expande cada vez mais. As escadas não têm fim. Sobe de pouco em pouco os poucos muitíssimos degraus. Consegue, enfim, abrir a porta de seu quarto. Precisa realizar a incrível tarefa de abrir seu pc, ligá-lo, e começar a digitar seus trabalhos extras de complementação de renda. Trancada em seu quarto Clarissa trabalha sua esfera engargantada cheia de ódio das frustrações a que lhe incumbiu o mundo.

Escreve. Digita. Transcreve.Traduz. Alucina. Dispersa-se. Ri. Mente.

Queria estar num lugar que não fosse a sua vida, talvez um barco em um riacho com peixes e águas-vivas: lançaria-se às águas e se perderia no azul a esfregar-se em seu corpo nu de medos e de esferas gargantares, vomitaria a bola até que um bicho desconhecido a tomasse e num frenesi se desapegaria de si mesma e se deixaria viver como sonha.

Besta que habita e faz redemoinhos no meio da mulher cansada, não há o que fazer senão voltar ao seu texto sobre a Holanda e seus artistas, depois voltar aos textos das utopias educacionais, depois voltar ao deleite de estudar retórica. E depois retornar ao texto Clarissa - uma escolha de ser? Talvez.

Clarissa enfim conseguiu subir as escadas e entrar em seu quarto. Passo 2:  

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Anne ama

Anne critica ardentemente Simone de Beauvoir. Anne ama seu trabalho, mas sofre em não poder cuidar de sua casa, como dita a cultura arraigada por anos em seu coletivo estado de ser humano em grupo convivendo. Anne ama, acima de tudo. Mas precisa se enquadrar no quadrado modernismo da mulher moderna que aceita ser sexualmente sexuada nos sentidos mais frios e prostitutos das palavras vis de homens que creem na prostituição do amor. Ainda assim, Anne ama.

Certo dia, Anne sai com um cara bacana, e ele a sexualiza. Certo dia, Anne sai com um cara descolado, e ele a sexualiza. Certo dia, Anne sai com um cara mais novo, e ele a sexualiza. Certo dia, Anne sai com um cara mais velho, e ele a sexualiza. E tanto fez-se maçã devorada, e nada acalentou aquilo que dentro de si se esvaziava a cada relação sexual fria e efêmera.

Anne ama. 

Ainda.

Certa do clichê "a esperança é a última que morre" - Anne ama, sem a quem amar ter

Fausto sentimento ignoto - Anne ama, sem amada se fazer

Idílio portentoso malogrado - Anne ama, e segue seu onirismo a jazer

...

Anne ainda ama.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

2012 de Noêmia

O primeiro dia do ano já não existia e a data que marcava a entrada de 2013 já não era mais primeiro de, mas tão somente o dia seguinte.

Noêmia, esse era o nome da jovem que estava neste instante sentada em uma beira de estrada a pensar no seu último ano, em suas aventuras, em suas desventuras, e em todo o tempo que deixara escorregar por entre os vãos de atitudes ignotas, pensava que não mais se lembrava de como havia sido seu primeiro de janeiro de 2012, com quem estivera, como se vestira, e coisas assim... mas lembrava-se de como se sentira: enleada.

Começaria um trabalho que não era dos piores mas que lhe cobraria uma atenção e um tempo os quais ela não estava disposta a dispender. Suas metas profissionais eram bem diferentes daquele trabalho no qual se metera por necessidade. O fez até o tempo em que ela nele foi precisa.

Meteu-se durante o ano todo em neblinas reais e metafóricas. As reais punham-lhe em risco a vida. As metafóricas, punham-lhe o espírito. Atormentada, mas insistente em manter a lucidez e a calma, continua seu trabalho mecânico-pedagógico-intelectual. Sofre a cada dia com o desprazer do que faz. Odeia seus discípulos a mostrarem isenção. A ofensa que sente a cada gesto de cada um deles a enche de amargura e a afasta cada vez mais de sua aspiração real. Embora todo aquele trabalho a enfastiasse, ele lhe garantia o necessário dinheiro maldito, e também servia para que ela se esquecesse do demônio que a atormentava dias e noites diligentes. Já não dormia e nem ficava acordada. Fazia simplesmente.

Lirtovir e dormir.

Noêmia, com sua beleza de flor, dorme, acorda, trabalha, faz de conta que está tudo bem, pois existe Lirtovir, o Deus contemporâneo daqueles que não conseguem mais acreditar em nada com fé que seja pura, pois duvidam de tudo que leem; começa a escolher partidos antes não tomados e, com isso, redescobre aproveitar o que já sabia, e num repente, sorri. Voltou a sonhar, coisa que já acreditava não se poderia mais fazer.

Abraçou um elefante lindo e pesado, o acariciou, e sentiu por ele amor. Neste elefante estavam belezas escondidas, e ele lhe dizia: "imitatio et representatio". Este mesmo elefante lhe baixou a tromba, convidou-a para que subisse, e mostrou-lhe que ali, em cima dele, o maldito dinheiro seria menor, mas dali, ela poderia ver de cima uma flor que havia nascido no asfalto. A mesma flor que Noêmia vira nascer há 6 anos, mas que julgava ser um acidente do acaso, e a via singela e pobre, no asfalto duro, com dó, imbuída de comiseração, insistindo em manter-se naquele lugar que não era para ela, esta mesma flor, vista de cima do elefante, vista de um ângulo diferente, tinha um miolo bem amarelinho alaranjando como o sol a se pôr num fim de tarde de inverno serrano e sereno. Suas pétalas pareciam ter sido pinceladas por um Deus que fosse de todos os seres humanos - coisa rara na história de nossa humanidade -, pois a cor que emanava daquela reação químico-física era de um enriquecer do espírito e da alma que humano algum pudesse julgar ser capaz de representar em tela, e se fosse a flor fotografada, perderia a vida do balançar das suas corolas.

E assim, Noêmia passou por aquela flor admirada daquela outra altura; disse-lhe adeus, e seguiu sua nova viagem em cima do elefante, acariciando as costas do animal e seguindo o caminho apontado pela tromba do grande e dócil bichinho: veredas.

2013