"Abancavam
depois numa taverna, que tinha escuras redes de pesca penduradas à porta.
Comiam peixe frito, creme e cerejas. Deitavam-se na relva; abraçavam-se debaixo
dos choupos; e queriam, como dois Robinsons, viver perpetuamente naquele
pequeno lugar, que lhes parecia, no meio daquela beatitude, o mais belo da
terra. Não era a primeira vez que viam árvores, céu azul e relva, que ouviam a
água corrente e a brisa ramalhando a folhagem; mas nunca decerto tinham
admirado tudo isso, como se anteriormente a natureza não existisse, ou como se
não tivesse começado a ser bela senão depois de eles terem saciado os seus
desejos."
Gustave
Flaubert - Madame Bovary
Estava ela ali,
elegante como lhe pedia o cenário, misteriosa como era de sua natureza, e
acessível somente aos remetentes certos, ou ainda, aos muito ousados, destes
que abrem outras do mesmo tipo sem rodeios, com o único intuito de saciar seu
desejo em descobrir o conteúdo desconhecido. Estava ela ali: a Epístola.
Pouco mais, ele
que há muito já havia lhe prometido um encontro, chegou quente como o esperado,
com seu cheiro único conforme lhe confere o escarlate do grão do qual provém,
acomodou-se ao lado da Epístola certo de seus objetivos naquele encontro tão
planejado para que nada desse errado.
− Enfim nos
encontramos! − cumprimentou-lhe o Café.
Eram duas da
tarde de uma sexta-feira, um rendez-vous óbvio para ambos ali, naquela tarde,
um horário típico para se fazer de conta a terceiros de que nada do que se está
ali acontecendo virá porventura à luz do conhecimento alheio.
Café mira
Epístola. Epístola chega mais perto de Café. Conversam como se não soubessem,
ou sequer imaginassem as proezas a passarem nas elucubrações um do outro. Eis
que então, Café não querendo se demonstrar como um verdadeiro Café que era −lugar
mais do que comum de todo café − deixa-se esparramar um quarto de si, apenas um
quarto, sobre um pouco do que seria parte da Epístola, atento às ações que ela
recepcionaria depois do proposital acidente. Neste ínterim, Epístola que se
mostrou, de forma sofística, constrangida, deu um jeito de se deixar abrir,
oportunidade esta em que Café pôde lê-la um pouco. Então, curioso de desejo, ou
de desejo curioso, Café aproximou-se afim de ver mais de perto as letrinhas de
Epístola e sentir que espécie de poesia ali havia; e de pouco em pouco ali
entrou, palavra por palavra, frase por frase, parágrafo por parágrafo. Café
chegou até a última linha, à saudação de adeus, e por fim à assinatura, lendo-a
por inteiro. Neste instante, Café esparramou-se todo sobre Epístola e foi dado
como completo o acidente. O proposital acidente.
Ficaram ali
misturados. Letras e líquido marrom.
Logo mais veio à
cena um anacrônico rapsodo que vendo aquele emaranhado de Epístola e Café,
pensou consigo mesmo que aquela imagem era deveras bela e digna de uma narrativa.
Não era, pois, material para ser jogado fora.
E o final da
história do encontro entre a Epístola e o Café ficou a encargo desse rapsodo.
Ninguém sabe o que aconteceu. Só se sabe o que o rapsodo canta. E quem quer de
fato saber? Se tantas epístolas podem ser escritas, e tantos cafés podem ser
coados.
Hoje, o rapsodo
canta esse epílio em botecos de MPB.