segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A gata angorá

Era uma vez uma pequena gata branca angorá acostumada a esperar tudo de bom do próximo. Com o passar do tempo, a gata começou a perceber que nem sempre temos  das pessoas, respostas que correspondam às nossas expectativas.

Ela era bonitinha, mas não tinha muitos atrativos: tinha, antes de tudo, medo de se relacionar com pessoas muito diferentes dela e de meios sociais muito divergentes.

A pequena gata queria encontrar um grande amor, como dita a cultura dos romances narrados e cantados desde que o mundo é mundo, desde que Páris arruinou Tróia por se apaixonar perdidamente por Helena, desde que Emma se suicidou por não amar e ser amada reciprocamente, desde que Iracema morreu sozinha depois de ter se apaixonado e ter tido um filho de um europeu estrangeiro, desde que Pagu, mesmo moça e linda, fora ludibriada pela vida boêmia de Oswald. A história da pequena gata branca angorá bonitinha e bem educada, e inteligente, era uma história já não mais de gata, mas a história de uma mulher recalcada de mágoas por amores e paixões, cheia de infortúnios, nada parecida com novelas de finais felizes, mas sim com a dura realidade romanesca das histórias que realmente representam a vida como ela é.

Passa a inventar coisas para preencher o vazio, como começar a tentar a latir, coisas que gatos não fazem. Encara até a água para poder se livrar de todos os fantasmas que configuram o seu medo. Começa a realizar atividades as quais ela considerava incapaz de fazer.

E a vida se preenche. E a vida segue. E a vida se faz.

Um dia a gata resolve se envolver com um cão. Afinal, ela já aprendera a latir. Diversão. A vida urge ser preenchida com essas atividades de relacionamentos também.

A vida vai correndo, um belo dia o cão a devora e o coração da pobre gata se desfaz em meio a um asfalto duro. Cassandra, esse era o nome da gata, perde-se. Ela já estava madura de outras desventuras amorosas, por que é que agora que já tinha a vida tão preenchida de coisas interessantes, deixara-se se envolver com um cão? Ela não podia acreditar em si própria.

Sossega, chora, senta, deita, levanta, vai até a varanda, se espreguiça, estica suas patinhas e deixa saltarem-se dos dedinhos todas as suas unhas com um ronronar espreguiçado e aliviante: foi triste de novo, mas a vida continua.

E lembra-se de continuar a preencher o não mais vazio da vida e prossegue a encarar mais uma nova aventura romanesca, pois a vida urge ser preenchida com essas atividades de relacionamentos.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

escrever

brincar de poetar é uma forma de mexer com os significados das palavras e tentar explicar o não sei que habita o eu

terça-feira, 13 de novembro de 2012

être

não sou eu, são coisas inventadas para preencher o vazio das derrotas
não sou eu, são desejos disfarçados de meninos maus e valentes
não sou eu, aquele ser das letras impossibilitado de entender o que lê

sou um sopro, porque a única coisa em que acredito é que a vida é um sopro
sou um sopro, porque sou a cada instante um novo disfarce rimando com cada fato-aspecto
sou um sopro, porque a expiração da felicidade e da tristeza se dá a cada fração de segundo

o que sou, uma imitação da vida, embora não seja uma obra literária
o que sou, uma peça de teatro sem diretor, embora tenha colaborações de uns poucos amigos-atores
o que sou, um poema concreto cuja palavra que mais reverbera é cacto bandeiriano

ser: verbo anômalo
ser: ligação de predicados
ser: aspecto que não infere ação

eu não sou ser
eu não sei ser
eu não só sonho ser

o papel que cumpro: continuar a ser
os deveres a que obedeço: continuar a ser
os planos que adio: continuar a ser

- Choro e durmo. Há infelicidade em toda falsidade da felicidade.

sábado, 3 de novembro de 2012

ciclo

o beco é um esgoto sombrio por onde se arrastam os trapos escondidos na memória inapagável. a memória que ao mesmo tempo é inapagável e inacessível. o cheiro não pode ser sentido pelo olfato senão pela imagem grotesca distorcida pelo não reconhecimento. máquina de um algo maior qualquer rasteja-se ignóbil. sorri a fingir-se. não teme. não ama. não sofre. e nesse contínuo segue a temer, amar e sofrer. e nada será feito a não ser que se espere um pulso de hormônios. e nada será mudado até que haja paixão. gozo. adrenalina. vontade. desejo. no agora escorre um grunhido mudo e forte, e alto, e obtuso, e gauche, e grosso, e desvelado. escorre sobre uma escadaria descendente. almeja encontrar o buraco das respostas. serpenteia no imaginário do não real. morre e aviva-se. morre e vem. não morre. permanece escorrendo por minutos horas dias meses anos intermináveis. resposta. ignara. um livro se abre e revela uma alusão a mais. analogias escorrem a escadaria velha de feridas rotas saturadas e charcadas de um charco asco desmedido e cinzento. talvez verde musguento. não negro, porque negro é lindo, tem significado concreto. verde musgo combina melhor. é menos definível. escorre mais. o cair da gosma fétida é um escorregar degrau a degrau lentamente, do primeiro para o segundo, ao chegar no quinto começa a ganhar peso e acelera-se o tombar, e o líquido nojento desce de forma mais e mais pesada. nojento. não dói. maculado. alívio das desgraças em uma única desventura. sofrimento agudo do não saber. a ignorância que traz o conhecimento amálgama à alma um espírito confuso e desordeiro em busca da perfeição da forma que busca o desformar-se. finge-se. come-se. finge-se. sorri-se. finge-se. ama-se. finge-se. abraça-se. finge-se. dorme-se. finge-se. descansa-se. finge-se. ocupa-se. finge-se. conversa-se. e por fim finge-se. chega a massa densa escorregando vagarosamente e torna permeáveis os degraus por meio de seu poder de corrosão. enterra-se. e conclui-se.