segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Paola



Hoje Paola está morta. Recebi a notícia pela PM, nesta madrugada. Esqueci de fechar o portão da garagem ao guardar o carro, nesse espaço de tempo, Paola saiu para rua. Ninguém em casa percebeu o portão aberto. Muito menos eu, que nunca esqueci o portão aberto, percebi. 

No meio da madrugada, eu estava no quarto traduzindo o Fromentin, resolvi me deitar, o sono enfim havia dado as caras, mal recostei a cabeça no travesseiro, luzes de lanternas bateram na sacada de meu quarto, batidas fortes na porta da sala, um tom de desespero. Desci a passos lentos e rápidos, de forma que aqueles homens que estavam à minha porta não percebessem a minha descida. Escondi-me debaixo da janela. Medo. Percebia somente um desespero por parte deles que se aglutinava ao meu com aquela situação tão inesperada. Eles falavam "é a polícia", mas eu era incapaz de acreditar. Minha mãe, inocente ou simplesmente menos cismada do que eu, com os barulhos, também começou a descer as escadas, bem devagar, com a calma dos 60 anos humanos. Eu dizia-lhe em voz sussurrante: "suba, mãe, suba, é perigoso", e ela desceu, ficou assustada ao me ver em posição de Gregor Samsa entre o sofá e o baú debaixo da janela: "o quê?" - foi até a porta e a abriu. 

A polícia estava preocupada conosco. O portão havia ficado aberto. Pensaram que talvez estivéssemos sofrendo um assalto, que talvez houvesse bandidos em nossa casa. Saímos, minha mãe e eu, para a garagem. Eu queria entender o portão aberto, mas só podia ter sido eu, aliás, fui a última a entrar em casa. Embora houvesse todo o perigo daquele portão aberto, tomou-me uma sensação de alívio: nada acontecera - estávamos sãos e salvos de todo e qualquer perigo possível de uma madrugada em que o portão de sua casa é deixado aberto. 

Olho para a caminha de Paola, não a encontro. Olho para a minha mãe e digo: "a Paola foi pra rua, mãe". Os PMs dizem para entrarmos, que se encontrarem um pequeno cãozinho marrom irão trazê-lo de volta. Eles entram em sua viatura, partem, e eu olho para minha mãe e digo: "a Paola está cega, mãe, deve estar perdida, vou procurá-la". Quando fui trocar meu pijama e pôr algo para ir para a rua, a viatura retornou: "encontramos a cachorrinha... é... ela tá morta... foi atropelada... tá ali, dobrando a esquina". Minha mãe: "aaa          ". Eu: "          ". Um dos policiais: "Vocês querem ir ali?"

Chegamos à conclusão de que o melhor era que eles colocassem a cachorrinha em um saco preto, e não a mostrassem para nós, pois eles haviam dito que durante o atropelamento ela havia perdido a cabeça. Paola foi decapitada como Maria Antonieta, guilhotinada. Atropelada como Roland Barthes. Coisa que pode acontecer a todo ser que vive. Mostraram-nos somente seu corpinho, seu bumbunzinho mesclado de amarelinho e marrom, seu toquinho. Não quiseram nos mostrar o resto. Também não quisermos ver.

Há pouco estava no pedacinho de quintal com terra daqui de casa, cavando. Começou a chover, tive que interromper a tarefa. Logo a chuva cessará e irei terminar esse pedido de desculpa à minha cachorrinha - enterrando-a. 

Ontem, quando cheguei da casa de meu irmão com minha mãe, logo que guardei o carro na garagem, antes de perceber o portão aberto, disse minha mãe: "uma notícia triste; o tio Quito morreu." A minha reação comandada pelo meu consciente freudiano foi olhar firme para ela e simplesmente continuar a fitando. O meu inconsciente (também freudiano, logo inacessível) largou o portão aberto. 

O meu misticismo irônico e oscilante levantou uma hipótese, esta ajuda a amenizar o deslize do ato. Que nessa noite, meu pai, morto no dia 6 de abril de 2011, viera buscar seu irmão, e pensou: "aproveitarei a viagem para levar Paola também".